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Train The Gut [Guia Básico]

 Os distúrbios gastrointestinais, que são uma queixa comum entre desportistas, podem chegar a afetar entre 30 a 50% dos atletas de endurance e são, provavelmente, um dos principais responsáveis por uma má prestação nas provas desportivas.(1)

Estes distúrbios podem incluir: diarreia, vómitos, cãibras abdominais e “inchaço abdominal”, com atletas de várias modalidades a queixarem-se sensação de bebida a acumulada no estômago e de se sentirem “cheios”, especialmente durante o exercício de alta intensidade, muito prolongado e em ambientes mais quentes.(2) A desidratação também pode contribuir para este fenómeno e agravar as queixas.(1-3)

A estratégia nutricional “train the gut” tem como base a grande adaptabilidade do sistema digestivo, sendo possível treiná-lo para tolerar volumes progressivamente mais elevados de fluídos e alimentos, de forma a minimizar a prevalência de distúrbios gastrointestinais e potenciar o rendimento desportivo.(4)

Permite tolerar volumes mais elevados de fluídos e sólidos

O uso desta estratégia pode permitir:

  1. Estender o estômago de forma aumentar a sua capacidade de conter líquidos e/ou alimentos.(4)
  2. Aumentar a tolerância a volumes elevados, minimizar o desconforto e a sensação de “estômago cheio”.(4)
  3. Acelerar o esvaziamento gástrico de glicose e frutose.(5-6)

Por exemplo, um estudo verificou que o conforto digestivo foi melhorando de forma significativa, ao longo do tempo, quando atletas de endurance passaram a ingerir uma quantidade elevada de uma solução contendo hidratos de carbono e eletrólitos, ao longo de corridas com 90 min de duração.(7)

Quais os mecanismos por detrás deste fenómeno?

É provável que o estômago tenha a capacidade de se adaptar a volumes progressivamente mais elevados de fluídos e/ou de alimentos sólidos, estendendo as suas paredes, de forma a permitir um aumento do espaço dentro dele.(4)

Estas adaptações provavelmente ocorrem devido à dessensibilização de receptores de nutrientes e pela redução do feedback inibitório de esvaziamento gástrico.(4-5)

Permite aumentar a absorção de hidratos de carbono

Vários trabalhos sugerem que a presença de glicose e de frutose influencia o número e/ou a atividade dos seus transportadores, tendo-se verificado que, um aumento dos níveis destes açúcares simples no intestino delgado promove um aumento do número e/ou da atividade dos transportadores SGLT1 e GLUT5, potenciando assim a absorção de glicose e frutose.(8-14)

De referir que o transportador SGLT1 efetua o transporte de glicose e o transportador GLUT5 é específico para o transporte de frutose.(4)

Por sua vez, este aumento da absorção de glicose e frutose poderá promover uma maior oxidação de hidratos de carbono de origem exógena e potenciar a performance em desportos de endurance.(15-18)

Quais os mecanismos por detrás deste fenómeno?

Alguns trabalhos sugerem que o epitélio intestinal contém células endócrinas (células L e células K) que têm recetores do sabor doce (T1R2 e T1R3) e a sua ativação dá início a uma série de eventos celulares que, em última instância, conduzem a um aumento da expressão do transportador SGLT1.(19)

Curiosamente, observou-se um aumento da expressão do SGLT1 não só com a ingestão de glicose, mas também com adoçantes não calóricos. tais como a sucralose, acesulfame K e a sacarina.(4)(20-21)

Outros estudos realizados em animais registaram mudanças relativamente rápidas na expressão do SGLT1, após apenas alguns dias de modificação da dieta.(20) A regulação do GLUT5 parece ser ainda mais rápida, com mudanças significativas a ocorrerem após apenas 3 horas de perfusão intestinal com uma solução de frutose.(13)

Permite aumentar a absorção de fluídos

O aumento da capacidade de absorção de hidratos de carbono também pode melhorar a absorção de fluídos,(4) tendo-se observado que, uma maior absorção de múltiplos hidratos de carbono transportáveis fez-se acompanhar por uma maior absorção de fluídos, no duodeno e no jejuno.(15)(22)

Por sua vez, o aumento da absorção de fluídos pode ajudar a prevenir a desidratação e consequentes reduções na performance, bem como minimizar as probabilidades de desconforto abdominal.(1)

Conclusão

O uso desta estratégia nutricional tem realmente potencial para reduzir o desconforto abdominal durante o exercício, aumentar a velocidade de esvaziamento gástrico e aumentar a capacidade de absorção de hidratos de carbono. Isto, por sua vez, poderá reduzir o risco de sintomas gastrointestinais e potenciar a performance nos treinos e em provas desportivas.(4)

➤ Mostrar/Ocultar Referências!
  1. de Oliveira EP, Burini RC, Jeukendrup A. Gastrointestinal complaints during exercise: prevalence, etiology, and nutritional recommendations. Sports medicine (Auckland, NZ). 2014; 44 Suppl 1(Suppl 1):S79-S85.
  2. Neufer PD, Young AJ, Sawka MN. Gastric emptying during exercise: effects of heat stress and hypohydration. European journal of applied physiology and occupational physiology. 1989; 58(4):433-9.
  3. Rehrer NJ, Beckers EJ, Brouns F, ten Hoor F, Saris WH. Effects of dehydration on gastric emptying and gastrointestinal distress while running. Medicine and science in sports and exercise. 1990; 22(6):790-5.
  4. Jeukendrup AE. Training the Gut for Athletes. Sports medicine (Auckland, NZ). 2017; 47(Suppl 1):101-10.
  5. Horowitz M, Cunningham KM, Wishart JM, Jones KL, Read NW. The effect of short-term dietary supplementation with glucose on gastric emptying of glucose and fructose and oral glucose tolerance in normal subjects. Diabetologia. 1996; 39(4):481-6.
  6. Yau AM, McLaughlin J, Maughan RJ, Gilmore W, Evans GH. Short-term dietary supplementation with fructose accelerates gastric emptying of a fructose but not a glucose solution. Nutrition (Burbank, Los Angeles County, Calif). 2014; 30(11-12):1344-8.
  7. Lambert GP, Lang J, Bull A, Eckerson J, Lanspa S, O'Brien J. Fluid tolerance while running: effect of repeated trials. International journal of sports medicine. 2008; 29(11):878-82.
  8. Jeukendrup A. The new carbohydrate intake recommendations. Nestle Nutrition Institute workshop series. 2013; 75:63-71.
  9. Kellett GL. The facilitated component of intestinal glucose absorption. The Journal of physiology. 2001; 531(Pt 3):585-95.
  10. Kellett GL, Brot-Laroche E, Mace OJ, Leturque A. Sugar absorption in the intestine: the role of GLUT2. Annual review of nutrition. 2008; 28:35-54.
  11. Dyer J, Al-Rammahi M, Waterfall L, Salmon KS, Geor RJ, Boure L, et al. Adaptive response of equine intestinal Na+/glucose co-transporter (SGLT1) to an increase in dietary soluble carbohydrate. Pflugers Archiv : European journal of physiology. 2009; 458(2):419-30.
  12. Ferraris RP, Villenas SA, Hirayama BA, Diamond J. Effect of diet on glucose transporter site density along the intestinal crypt-villus axis. The American journal of physiology. 1992; 262(6 Pt 1):G1060-8.
  13. Kishi K, Takase S, Goda T. Enhancement of sucrase-isomaltase gene expression induced by luminally administered fructose in rat jejunum. The Journal of nutritional biochemistry. 1999; 10(1):8-12.
  14. Karasov WH, Pond RS, 3rd, Solberg DH, Diamond JM. Regulation of proline and glucose transport in mouse intestine by dietary substrate levels. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 1983; 80(24):7674-7.
  15. Jeukendrup AE, Moseley L. Multiple transportable carbohydrates enhance gastric emptying and fluid delivery. Scandinavian journal of medicine & science in sports. 2010; 20(1):112-21.
  16. Vandenbogaerde TJ, Hopkins WG. Effects of acute carbohydrate supplementation on endurance performance: a meta-analysis. Sports medicine (Auckland, NZ). 2011; 41(9):773-92.
  17. Smith JW, Zachwieja JJ, Peronnet F, Passe DH, Massicotte D, Lavoie C, et al. Fuel selection and cycling endurance performance with ingestion of [13C]glucose: evidence for a carbohydrate dose response. Journal of applied physiology (Bethesda, Md : 1985). 2010; 108(6):1520-9.
  18. Smith JW, Pascoe DD, Passe DH, Ruby BC, Stewart LK, Baker LB, et al. Curvilinear dose-response relationship of carbohydrate (0-120 g.h(-1)) and performance. Medicine and science in sports and exercise. 2013; 45(2):336-41.
  19. Shirazi-Beechey SP, Moran AW, Batchelor DJ, Daly K, Al-Rammahi M. Glucose sensing and signalling; regulation of intestinal glucose transport. The Proceedings of the Nutrition Society. 2011; 70(2):185-93.
  20. Margolskee RF, Dyer J, Kokrashvili Z, Salmon KS, Ilegems E, Daly K, et al. T1R3 and gustducin in gut sense sugars to regulate expression of Na+-glucose cotransporter 1. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 2007; 104(38):15075-80.
  21. Dyer J, Vayro S, King TP, Shirazi-Beechey SP. Glucose sensing in the intestinal epithelium. European journal of biochemistry. 2003; 270(16):3377-88.
  22. Shi X, Summers RW, Schedl HP, Flanagan SW, Chang R, Gisolfi CV. Effects of carbohydrate type and concentration and solution osmolality on water absorption. Medicine and science in sports and exercise. 1995; 27(12):1607-15.

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