Avançar para o conteúdo principal

É possível transformar gordura em músculo?

 "Quero transformar gordura em músculo!" Essa é uma das frases mais ouvidas por nutricionistas, personal trainers e outros profissionais que trabalham em ginásios, estúdios e consultórios de nutrição.

Talvez os indivíduos que têm essa pretensão acreditem que é possível transformar gordura em massa porque viram fotos ou assistiram a casos de transformação, em que alguém aparecia com bastante gordura e pouca massa muscular, e mais tarde musculado e definido, com uma % de gordura corporal mais baixa.

Dito isto, será realmente possível converter gordura em músculo, como tantos gostariam?

Em primeiro lugar, há que esclarecer que a gordura corporal e o músculo esquelético são dois tipos de tecido corporal completamente distintos.

O primeiro é constituído sobretudo por adipócitos, ou células adiposas brancas, cuja principal função é armazenar o excesso de energia, na forma de lípidos neutros, e de fornecer energia em condições de défice energético1.

O segundo é um tipo de tecido altamente organizado, vascularizado e inervado, constituído por um grande número de fibras musculares (miócitos), que por sua vez são constituídos por um elevado número de células musculares (miofibrilas), os quais dispõem de maquinaria contráctil (sarcómeros) capaz de gerar movimento2.

Para além disso, o tecido adiposo é constituído sobretudo por lípidos3, enquanto que o músculo esquelético é constituído sobretudo por água (75%) e proteína (20%)4.

De referir que, em condições fisiológicas normais, após a sua diferenciação terminal, a capacidade dos adipócitos se “transformarem” noutros tipos de células é altamente questionável5,6.

Por isso, considera-se que não é possível transformar gordura em massa muscular7. No entanto, é possível diminuir a dimensão dos adipócitos, com a recurso a uma dieta com défice energético8 e, ao mesmo tempo, em cenários específicos, pode ser possível direcionar a energia armazenada no tecido adiposo para a construção de novo tecido muscular e promover a sua hipertrofia, através do estímulo proporcionado pelo exercício resistido9,10.

Em que circunstâncias é possível perder gordura e ganhar massa muscular ao mesmo tempo?

Verificou-se que existem pelo menos 5 cenários em que é possível perder gordura e ganhar massa muscular ao mesmo tempo:

Em principiantes: Os indivíduos em péssima forma física e com pouca ou nenhuma experiência de treino são os que podem obter mudanças mais dramáticas em termos de recomposição corporal, observando-se perda marcada de gordura corporal, acompanhada por um aumento da massa muscular, mesmo sem modificações no seu regime alimentar habitual11,12, e também em regime de restrição energética9,10.

De notar que, num contexto de défice energético, os principiantes com maiores quantidades de gordura corporal parecem ser os que geralmente obtêm perdas mais acentuadas de gordura e maiores ganhos de massa muscular9,10, possivelmente devido a estes possuírem maiores reservas de energia, que o seu organismo permite que sejam direcionadas para a hipertrofia do músculo esquelético.

No regresso aos treinos: A paragem dos treinos resistidos tende a causar um certo grau de atrofia muscular e aumento da gordura corporal. Aquando da retoma dos treinos, o processo de hipertrofia muscular tende a ocorrer de forma mais rápida, até se recuperar a massa muscular adicional que se havia acumulado anteriormente, um fenómeno mediado pela chamada “memória muscular”13,14.

Esta ocorrência parece ser mediada por mudanças epigenéticas e pela manutenção dos mionúcleos extra, que foram adicionados às fibras musculares durante o período prévio, no qual ocorreu aumento de massa muscular13,14. Em teoria, isto também poderá ser acompanhado por perda simultânea de gordura corporal, tal como acontece em principiantes.

Em programas de treino supervisionados: Verificou-se que o seguimento de um plano de treino individualizado e supervisionado, pode proporcionar perda significativa de gordura, acompanhada por maior hipertrofia muscular, mesmo em indivíduos com experiência prévia de treino resistido15.

Aumentando a ingestão de proteína: Alguns trabalhos demonstram que o aumento da ingestão deste macronutriente pode promover uma maior perda de gordura e aumento da massa muscular16 , sobretudo em indivíduos inexperientes, com excesso de peso e que seguiram uma dieta de restrição energética17.

De referir que alguns estudos sugerem que, mesmo em indivíduos que realizam treino resistido, a suplementação com proteína whey, numa dieta isoenergética, promove a perda de gordura corporal, podendo ainda promover a hipertrofia muscular, embora não de forma significativa18.

Através da manipulação hormonal: O aumento dos níveis de testosterona, por via exógena, promove uma melhoria da composição corporal, nomeadamente aumentos marcados da massa muscular e diminuição da quantidade de gordura corporal19-21.

O mesmo acontece com a administração de hormona de crescimento22,23, SARMs24 e de determinados compostos com estrutura relativamente similar à da testosterona25-27.

Conclusão

Como se pode ver, embora a tão almejada transformação de gordura em massa muscular seja considerada fisiologicamente impossível, em determinados cenários, é possível diminuir a quantidade de tecido adiposo presente no corpo humano, enquanto se aumenta a massa muscular.

No entanto, essas circunstâncias tendem a ser temporárias, ou excecionais e, a manipulação hormonal é vivamente desaconselhável, devido aos potenciais efeitos secundários resultantes dessa prática.

Após algum tempo, esta recomposição corporal deixará de ocorrer e será necessário tomar uma decisão, optando por um dos seguintes:

  1. Seguir um regime de restrição energética, de forma a continuar a perder gordura, o que também tende a provocar a perda de uma quantidade variável de massa magra28.
  2. Adotar um regime alimentar que proporcione um ligeiro excedente energético, com vista a promover a hipertrofia muscular, o que também tende a favorecer o acúmulo de tecido adiposo29 30.

Para melhores resultados e, no que respeita ao regime alimentar, recomenda-se o acompanhamento de um nutricionista. Relativamente aos treinos, também poderá obter maiores benefícios se estes forem supervisionados por um personal trainer, com a devida formação na área15.

➤ Mostrar/Ocultar Referências!
  1. Choe SS, Huh JY, Hwang IJ, Kim JI, Kim JB. Adipose Tissue Remodeling: Its Role in Energy Metabolism and Metabolic Disorders. Front Endocrinol (Lausanne). 2016;7:30-30.
  2. Mukund K, Subramaniam S. Skeletal muscle: A review of molecular structure and function, in health and disease. Wiley Interdiscip Rev Syst Biol Med. 2020;12(1):e1462-e1462.
  3. Thomas LW. The chemical composition of adipose tissue of man and mice. Quarterly journal of experimental physiology and cognate medical sciences. 1962;47:179-188.
  4. Frontera WR, Ochala J. Skeletal muscle: a brief review of structure and function. Calcified tissue international. 2015;96(3):183-195.
  5. Gregoire FM, Smas CM, Sul HS. Understanding adipocyte differentiation. Physiological reviews. 1998;78(3):783-809.
  6. Wei S, Zan L, Hausman GJ, Rasmussen TP, Bergen WG, Dodson MV. Dedifferentiated adipocyte-derived progeny cells (DFAT cells): Potential stem cells of adipose tissue. Adipocyte. 2013;2(3):122-127.
  7. Pedersen BK. Muscle-to-fat interaction: a two-way street? J Physiol. 2010;588(Pt 1):21-21.
  8. Verhoef SPM, Camps SGJA, Bouwman FG, Mariman ECM, Westerterp KR. Physiological response of adipocytes to weight loss and maintenance. PLoS One. 2013;8(3):e58011-e58011.
  9. Donnelly JE, Sharp T, Houmard J, et al. Muscle hypertrophy with large-scale weight loss and resistance training. The American journal of clinical nutrition. 1993;58(4):561-565.
  10. Longland TM, Oikawa SY, Mitchell CJ, Devries MC, Phillips SM. Higher compared with lower dietary protein during an energy deficit combined with intense exercise promotes greater lean mass gain and fat mass loss: a randomized trial. The American journal of clinical nutrition. 2016;103(3):738-746.
  11. Wallace MB, Mills BD, Browning CL. Effects of cross-training on markers of insulin resistance/hyperinsulinemia. Medicine and science in sports and exercise. 1997;29(9):1170-1175.
  12. Nindl BC, Harman EA, Marx JO, et al. Regional body composition changes in women after 6 months of periodized physical training. 2000;88(6):2251-2259.
  13. Seaborne RA, Strauss J, Cocks M, et al. Human Skeletal Muscle Possesses an Epigenetic Memory of Hypertrophy. Sci Rep. 2018;8(1):1898-1898.
  14. Gundersen K, Bruusgaard JC, Egner IM, Eftestøl E, Bengtsen M. Muscle memory: virtues of your youth? J Physiol. 2018;596(18):4289-4290.
  15. Storer TW, Dolezal BA, Berenc MN, Timmins JE, Cooper CB. Effect of supervised, periodized exercise training vs. self-directed training on lean body mass and other fitness variables in health club members. Journal of strength and conditioning research. 2014;28(7):1995-2006.
  16. Antonio J, Ellerbroek A, Silver T, et al. A high protein diet (3.4 g/kg/d) combined with a heavy resistance training program improves body composition in healthy trained men and women--a follow-up investigation. Journal of the International Society of Sports Nutrition. 2015;12:39.
  17. Demling RH, DeSanti L. Effect of a hypocaloric diet, increased protein intake and resistance training on lean mass gains and fat mass loss in overweight police officers. Annals of nutrition & metabolism. 2000;44(1):21-29.
  18. LH AC, FH SdA, MY MO, et al. Comparative Meta-Analysis of the Effect of Concentrated, Hydrolyzed, and Isolated Whey Protein Supplementation on Body Composition of Physical Activity Practitioners. Nutrients. 2019;11(9).
  19. Bhasin S, Parker RA, Sattler F, et al. Effects of testosterone supplementation on whole body and regional fat mass and distribution in human immunodeficiency virus-infected men with abdominal obesity. The Journal of clinical endocrinology and metabolism. 2007;92(3):1049-1057.
  20. Saad F, Aversa A, Isidori AM, Gooren LJ. Testosterone as potential effective therapy in treatment of obesity in men with testosterone deficiency: a review. Current diabetes reviews. 2012;8(2):131-143.
  21. Pasiakos SM, Berryman CE, Karl JP, et al. Effects of testosterone supplementation on body composition and lower-body muscle function during severe exercise- and diet-induced energy deficit: A proof-of-concept, single centre, randomised, double-blind, controlled trial. EBioMedicine. 2019;46:411-422.
  22. Nam SY, Kim KR, Cha BS, et al. Low-dose growth hormone treatment combined with diet restriction decreases insulin resistance by reducing visceral fat and increasing muscle mass in obese type 2 diabetic patients. International journal of obesity and related metabolic disorders : journal of the International Association for the Study of Obesity. 2001;25(8):1101-1107.
  23. Hermansen K, Bengtsen M, Kjær M, Vestergaard P, Jørgensen JOL. Impact of GH administration on athletic performance in healthy young adults: A systematic review and meta-analysis of placebo-controlled trials. Growth hormone & IGF research : official journal of the Growth Hormone Research Society and the International IGF Research Society. 2017;34:38-44.
  24. Solomon ZJ, Mirabal JR, Mazur DJ, Kohn TP, Lipshultz LI, Pastuszak AW. Selective Androgen Receptor Modulators: Current Knowledge and Clinical Applications. Sex Med Rev. 2019;7(1):84-94.
  25. Lovejoy JC, Bray GA, Greeson CS, et al. Oral anabolic steroid treatment, but not parenteral androgen treatment, decreases abdominal fat in obese, older men. International journal of obesity and related metabolic disorders : journal of the International Association for the Study of Obesity. 1995;19(9):614-624.
  26. Mavros Y, O'Neill E, Connerty M, et al. Oxandrolone Augmentation of Resistance Training in Older Women: A Randomized Trial. Medicine and science in sports and exercise. 2015;47(11):2257-2267.
  27. Schroeder ET, Zheng L, Ong MD, et al. Effects of androgen therapy on adipose tissue and metabolism in older men. The Journal of clinical endocrinology and metabolism. 2004;89(10):4863-4872.
  28. Chappell AJ, Simper T, Helms E. Nutritional strategies of British professional and amateur natural bodybuilders during competition preparation. Journal of the International Society of Sports Nutrition. 2019;16(1):35-35.
  29. Slater GJ, Dieter BP, Marsh DJ, Helms ER, Shaw G, Iraki J. Is an Energy Surplus Required to Maximize Skeletal Muscle Hypertrophy Associated With Resistance Training. Front Nutr. 2019;6:131-131.
  30. Iraki J, Fitschen P, Espinar S, Helms E. Nutrition Recommendations for Bodybuilders in the Off-Season: A Narrative Review. Sports (Basel). 2019;7(7):154.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Quanta proteína é possível absorver por refeição?

Dentre a série de tópicos relativamente controversos englobados no mundo da nutrição temos a questão da quantidade de proteína que o corpo humano consegue absorver no seguimento de uma dada refeição. Relacionado com a mesma temática, temos a questão da definição da quantidade de proteína que idealmente se deve ingerir após a execução de um treino resistido, com vista a maximizar a síntese de proteína muscular. Estudos publicados até há poucos anos concluíram que a ingestão de 20 a 25 g de proteína de boa qualidade (whey, proteína do leite, ou proteína de ovo) após um treino de musculação direcionado à musculatura dos membros inferiores seria o suficiente para maximizar a síntese de proteína muscular em adultos jovens e saudáveis, sendo que em doses superiores os aminoácidos “excedentários” seriam simplesmente oxidados. 1,2   Entretanto, em 2016, os autores Macnaughton et al. 3 verificaram que a suplementação com 40 g de proteína whey após uma sessão de treino de musculação de corpo i

Os Suplementos Termogénicos Funcionam?

A obesidade encontra-se classificada como uma doença crónica cuja prevalência tem vindo a aumentar ao ponto de atualmente ser considerada uma pandemia. ¹ Atualmente, verifica-se que a maioria da população europeia (60%) encontra-se na categoria de pré-obesidade, ou obesidade. ¹ Em Portugal o cenário é relativamente similar, com 57,1% dos indivíduos a apresentar um índice de massa corporal ≥25 kg/m². ²   Logicamente, esta população numerosa representa um mercado apetecível para as empresas envolvidas na produção e/ou comercialização de suplementos alimentares, que ambicionem aumentar as suas vendas.  Do conjunto de suplementos direcionados para a perda de peso/gordura, destacam-se os termogénicos, os quais, supostamente, promovem um aumento da lipólise através de um aumento do metabolismo, induzido por determinados compostos presentes nesses suplementos.  Mas será que os suplementos termogénicos efetivamente facilitam a perda de peso ou de gordura em indivíduos pré-obesos ou obesos?  Cl

É Melhor Perder Peso de Forma Rápida ou Lenta?

A perda de gordura pode proporcionar vários benefícios para a saúde daqueles que têm excesso de peso. ¹⁻² e é uma necessidade imperativa para atletas de determinados desportos e para aqueles que participam em competições de culturismo e similares.³ No entanto, independentemente do ritmo a que se perde peso, há uma série de consequências negativas que são praticamente impossíveis de evitar. Esses efeitos indesejáveis incluem a diminuição da taxa metabólica basal em repouso,⁴ dos níveis de testosterona,⁵ perda de massa magra,⁶ e diminuição da força muscular.⁷⁻⁸ De forma a minimizar esses efeitos negativos, são muitos aqueles que evitam as dietas mais drásticas, do tipo yo-yo e que, em vez disso, aconselham uma perda de peso lenta, por exemplo, de 0,5 kg de peso corporal, por semana.³ O que diz a ciência? Já foram conduzidos variados estudos que procuraram determinar qual a velocidade de perda de peso que melhor preserva a taxa metabólica, a massa magra, bem como os níveis de testosterona