Já é sabido que um grau de desidratação superior a apenas 2% do peso corporal é suficiente para causar decrementos ao nível do rendimento cognitivo e desportivo, sobretudo em ambientes quentes.1-4
Por esse motivo, e de forma a assegurar que o atleta está euhidratado antes do início do evento desportivo, as diretrizes atuais recomendam a ingestão de 5-10 mL de água por kg de peso corporal, 2-4 horas antes do início de um evento desportivo.1
Embora a ingestão de fluídos durante o exercício possa limitar ou até mesmo prevenir a desidratação, existem vários desportos onde é difícil ingerir uma quantidade suficiente para manter um estado euhidratado.5-9 e a ingestão de quantidades elevadas de água (0,83 a 1,65 L), durante o exercício prolongado, pode causar intoxicação por água.9
Para além disso, durante o exercício intenso no calor, as taxas de sudação, que podem atingir valores superiores a 2,7 L/hora,10,11 podem exceder as taxas de esvaziamento gástrico para a água.12,13
Neste cenário, será que a ingestão e retenção de uma maior quantidade de fluídos (hiperhidratação), imediatamente antes de um evento desportivo realizado num ambiente quente, e no qual se espera que o atleta perca uma quantidade significativa de água, atrasa o início da desidratação e proporciona efeitos ergogénicos?
A hiperhidratação tem efeitos ergogénicos?
Existem várias formas possíveis de promover a hiperhidratação, algumas das quais serão descritas ao longo deste artigo.
Água Simples
Em 1996, Rico-Sanz e colegas procuraram determinar se o aumento da ingestão diária de água, ao longo de uma semana antes de uma competição, poderia aumentar a quantidade total de água (hiperhidratação) em jogadores de futebol, reduzindo assim o stress do aumento da temperatura corporal durante um jogo, e se isso levaria a uma melhoria da performance.14
Para isso, os investigadores recrutaram 8 jogadores de futebol experientes, que foram designados, de forma aleatória, a participar primeiro num período de hiperhidratação (HH), que envolveu a ingestão de um mínimo de 65 ml de fluídos/kg de peso/dia, ou num período de hidratação voluntária (ad libitum). Após uma semana, jogaram um jogo de futebol, a uma temperatura ambiente de 26,8°C e 81% de humidade e foram efetuadas diversas avaliações.14
Apesar de também ter aumentado a excreção de urina, o aumento da ingestão de água, ao longo de uma semana, aumentou a quantidade total de água corporal em 1,1 L, em comparação com a ingestão voluntária (ad libitum).14
Neste estudo, apesar de não se terem detetado diferenças ao nível da performance, observou-se um aumento mais expressivo da temperatura corporal (2,04°C) no grupo da hidratação voluntária em comparação com um aumento menos expressivo, de 1,71°C, no grupo da hiperhidratação, ao longo de um jogo de futebol.14
Sódio
O consumo de água pura não parece ser capaz de promover uma retenção significativa de fluidos,15,16 no entanto, existem vários compostos capazes de o fazer, facilitando assim a hiperhidratação.
Por exemplo, a ingestão oral de sódio promove a retenção de fluídos no organismo,17 estimula a ingestão voluntária (ad libitum) de fluídos antes,17 durante18 e após o exercício, em indivíduos ligeiramente desidratados,19 e também em euhidratados.17
Com efeito, o sódio estimula a sede e promove a libertação de vasopressina,20 uma hormona que também promove a retenção de fluídos ao estimular a reabsorção de filtrado no nefrónio, incluindo em indivíduos euhidratados.20,21
Num trabalho recente, verificou-se que a ingestão aguda de 60 mg de NaCl por kg de peso corporal provocou um aumento da ingestão voluntária e da retenção de água em indivíduos euhidratados, durante um período de 2 horas antes do exercício, que consistiu em 60 min de corrida submáxima, numa bicicleta ergométrica, com o objetivo de desidratar, seguido de imediato por um contra-relógio a 200 kj.17
Sódio | Placebo | Ausência de tratamento | |
Água consumida | 1380 ml | 815 ml | 815 ml |
Água retida | 821 ml | 244 ml | 244 ml |
% de desidratação | 0,7% | 1,3% | 1,6% |
Contra-relógio a 200 kj | 773 seg | 851 seg | 872 seg |
Este aumento do consumo e retenção de fluídos conduziu a um aumento significativo da hidratação pré-exercício, do estado de hidratação e da performance durante o exercício no calor.17
Num outro trabalho, verificou-se que a hiperhidratação com recurso ao sódio atrasou a desidratação e melhorou a capacidade de endurance durante 2 horas de ciclismo num clima temperado. Mais precisamente observou-se uma melhoria de 5% da potência de pico e de 14% no tempo até a exaustão.22
Entretanto, outros trabalhos não demonstraram melhorias na performance com a hiperhidratação com sódio,23,24 embora um deles tenha registado uma diminuição do stress térmico e cardiovascular23 e outro uma melhoria do estado de hidratação ao longo uma corrida de longa distância (10 km).24
Glicerol
O glicerol é um composto à base de carbono e que contém três grupos hidroxila (OH). À temperatura ambiente é um líquido viscoso, incolor, inodoro e de sabor doce.25
Este é também um metabolito libertado durante a degradação de triglicerídeos e está presente, em pequenas concentrações, em todas as células do corpo humano.26
Para além de ser um composto osmoticamente ativo,27 pensa-se que o glicerol favorece a hiperhidratação ao promover a reabsorção de água nos túbulos distais e ductos coletores do rim.15,28
Este composto já fez parte da lista de compostos proibidos pela WADA, mas essa proibição foi levantada a partir de 1 de Janeiro de 2018.29
Uma meta-análise publicada em 2007 e que incluiu 14 trabalhos na sua análise, concluiu que, de forma coletiva, em comparação com a hiperhidratação com 23,9 ml/kg de água simples, a suplementação com 1,1g/kg de glicerol + 23,9 ml/kg de água, traduz-se numa maior retenção de fluídos (+7,7 ml/kg de peso corporal), e associa-se a uma melhoria de 2,6% no exercício de endurance, 136 minutos após o estabelecimento da hiperhidratação.8
Um artigo de revisão, mais recente, analisou a performance no exercício após hiperhidratação ou reidratação com glicerol, e verificou que de um total de 18 estudos, 11 mostraram melhorias significativas da performance nos testes com glicerol, incluindo um aumento do tempo total até à exaustão no exercício de endurance (até +24%), bem como melhorias da performance no contra-relógio (até +4,1%) e um aumento da potência ou do trabalho total (até +5%).27
Nos estudos que demonstraram benefícios, as melhorias foram associadas a aumentos do volume plasmático e da taxa de sudação, bem como uma diminuição da temperatura central e da taxa de perceção de esforço.27
Embora outros estudos não tenham observado benefícios na performance, nenhum demostrou decrementos significativos da performance após a hiperhidratação ou reidratação com glicerol.30
Também há que ter em conta que, em casos muito raros, o consumo de glicerol pode causar alguns efeitos secundários, incluindo náuseas, desconforto abdominal, tonturas e dores de cabeça.29,30
Como usar?
Foi sugerido que os atletas de endurance que tencionam usar o glicerol para hiperhidratar, devem ingerir 1,2 g de glicerol por kg/peso, dissolvidos em 26 mL de fluídos por kg de peso corporal, ingeridos ao longo de 60 minutos, e 30 minutos antes do início do exercício.30,31
Glicerol vs Sódio vs Gatorade vs Água
Já foi realizado um trabalho no qual se compararam os efeitos de 4 soluções distintas na retenção de fluídos, ao longo de um período de 5 horas.8
Mais precisamente, testou-se a adição de glicerol (1,2 g glicerol/kg peso) ou sódio (2300 mg/L) a uma grande quantidade de fluídos (26 mL de água por kg peso corporal), com uma bebida isotónica (Gatorade) contendo 552 mg de sódio/L, e também com a ingestão de água simples.8
2,5 horas após a ingestão das diferentes soluções, que correspondeu ao ponto de retenção mais elevado de fluídos para ambos os tratamentos, a retenção de fluídos foi 26% mais elevada na condição com glicerol, em comparação com a condição com sódio.8
Por sua vez, a retenção de fluídos com Gatorade e água simples foi idêntica, e foi 56% inferior em comparação com o glicerol+água e 42% inferior em comparação com o sódio+água.8
O aumento do peso causado pela hiperhidratação prejudica a performance?
Seria razoável assumir que o aumento do peso causado pela hiperhidratação poderia ter uma influência negativa no rendimento desportivo.
Um estudo demonstrou que a hiperhidratação com glicerol, apesar de ter promovido uma maior retenção de fluídos (~900 ml), não se associou a uma diminuição da performance nos tempos de sprint de 5 e 10 metros.16
Beis et al. verificaram que o aumento de 0,9 kg de peso corporal, induzida por uma combinação de glicerol + creatina + fluídos, não diminui a economia de corrida em atletas experientes que completaram uma corrida de 30 min a 60% do seu VO2max, a 10 °C e 35 °C de temperatura ambiente.32
Os autores de um trabalho mais recente, consideram pouco provável que o ganho de 1 kg adicional de água, derivado da ingestão de 2990 mg de sódio/L, interfira na velocidade de corrida e diminua a economia de corrida em atletas altamente treinados, tanto em condições planas como inclinadas.23
Conclusão
Embora se trate de um tema que merece ser mais investigado, a generalidade da literatura parece sugerir que, em determinadas condições ambientais, a hiperhidratação atrasa o surgimento da desidratação e pode proporcionar uma melhoria do rendimento desportivo.8,27
De referir que as soluções que contêm concentrações significativas de sódio, são pouco agradáveis ao paladar, o que torna esta estratégia pouco apelativa para os atletas.8,33 Por outro lado, o glicerol, com o seu sabor doce, parece ser uma opção bem mais palatável25 e, ao mesmo tempo, uma estratégia de pré-hidratação mais eficiente do que o sódio e a água simples.8
Entretanto, também é possível que a adição de glicerol a uma bebida isotónica possa potenciar ainda mais os benefícios de hiperhidratação que o glicerol proporciona, ao mesmo tempo que fornece sódio, para evitar a hiponatremia.30,34
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